Confronto de narrativas(?)
O Procurador-Geral da República (PGR), Paulo Gonet, apresentou denúncia contra o ex-presidente Jair Bolsonaro, acusando-o de envolvimento em organização criminosa, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito e golpe de Estado.
A peça acusatória elaborada pelo PGR gerou reações divergentes.
Para alguns, trata-se de um documento sólido e bem fundamentado; para outros, nada mais é do que um conjunto de conjecturas sem respaldo jurídico.
A estrutura da denúncia segue fielmente a linha de pensamento de Ronald Dworkin, renomado filósofo do Direito e autor de O Império do Direito, obra na qual construiu a teoria do direito como integridade, construiu uma teoria segundo a qual a interpretação jurídica pode ser comparada a um romance escrito a várias mãos e no qual há personagens bem definidos, incluindo heróis, vilões e vítimas. Tudo isso estruturado dentro de uma lógica interna que culmina em um desfecho que pode ser a condenação ou absolvição, dependendo da visão do romancista.
A sua ideia de romance em cadeia é uma metáfora utilizada para explicar sua visão do Direito. Como disse acima, o Direito se desenvolve como um romance escrito por vários autores em sequência. Os juízes são espécies de escritores de uma narrativa. Dessa forma, cada capítulo do romance representa uma decisão judicial, e os juízes devem agir de forma colaborativa, interpretando casos semelhantes de maneira consistente. Assim, os magistrados que estão julgando questões atuais devem basear suas decisões em decisões anteriores, interpretando-as de modo sequencial e alinhado ao já estabelecido, interpretando e continuando a história de maneira coerente com o que foi escrito antes, mas, quando necessário, adicionando sua própria contribuição criativa, desde que respeite a integridade da narrativa anterior e garantindo que o Direito, considerando os precedentes e os princípios morais subjacentes, seja interpretado de forma a manter a coerência e a integridade ao longo do tempo (https://indexlaw.org/index.php/revistaprocessojurisdicao/article/view/8123; file:///C:/Users/sergi/Downloads/suyenerocha,+8.+GABRIELLE+E+JAQUELINE.pdf).
Paulo Gonet apropriou-se dessa abordagem intelectual para reconstituir, em termos temporais e espaciais, a suposta tentativa de golpe protagonizada por Jair Bolsonaro e seus aliados.
De acordo com o PGR, as raízes do movimento golpista remontam a 7 de setembro de 2021, quando Bolsonaro convocou manifestações contra o sistema. O cenário teria sido construído com atores bem definidos e mobilização de diversos setores, resultando em um suposto crime de empreendimento coletivo. No entanto, a reação do general comandante, que teria recuado diante das circunstâncias, impediu a concretização do plano. Esse contexto, segundo Gonet, pavimentou o caminho para os acontecimentos de 8 de janeiro de 2023.
O cerne da acusação sustenta que o bem jurídico-político atingido foi a democracia, usurpada por um grupo que não representava o Estado nem a vontade popular – e, ainda que representasse, não teria legitimidade para se apropriar da democracia, que pertence ao povo.
Essa linha de raciocínio reflete a abordagem dworkiniana adotada por Gonet.
Aqueles que concordam com a denúncia alegam que há evidências abundantes, todas deixadas pelos próprios envolvidos no ato golpista. Nesse sentido, surge a indagação: por que os conspiradores teriam guardado tantas provas contra si mesmos, incluindo documentos, listas de nomes e planos detalhados?
Os defensores da tese do PGR sugerem que esses registros foram preservados porque os envolvidos acreditavam que teriam êxito e que os documentos serviriam como um legado histórico para a posteridade, ajudando a consolidar a memória do evento e do regime que se esperava instaurar.
Entretanto, há quem discorde frontalmente dessa narrativa, argumentando que a denúncia se baseia em documentos que nunca existiram ou não foram assinados, o que lhes retiraria qualquer validade. Descartando tais “documentos”, restaria apenas a delação premiada de Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, amplamente divulgada pela imprensa como uma peça-chave para a acusação. No entanto, críticos consideram essa delação é frágil, e apontam que foi mantida sob sigilo todo esse tempo pelo ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), até o momento da denúncia formal do PGR justamente pela sua fragilidade.
Para esses críticos, a delação de Mauro Cid (https://www.youtube.com/watch?v=wCLVZxvZiFQ; https://www.youtube.com/watch?v=VQqA8mS3nHw) não sustenta as acusações de Gonet, conforme demonstram as palavras do militar:
“Bom, então antes de mais nada, eu queria esclarecer que eu pessoalmente não participei de nenhum planejamento, execução ou tomei ciência de pormenores que pudessem estar sendo planejados ou executados. Eu não executei, eu não vi documento, eu não participei de datas ou nada detalhado sobre isso. O que eu sei, o que eu participei e o que eu ouvi, você tinha núcleos militares, como o general Mário, que estavam instigando o presidente a fazer alguma coisa, estavam querendo que ele fizesse alguma coisa, tanto que foi o que está relatado na minha conversa que ele manda para mim, que ele diz que até dia 12 tem que assinar, tem que fazer até dia 31 de dezembro, e eu falo, mas eu acho que não vai acontecer nada de assinatura de decreto (…)”.
“A reunião que teve na parte de baixo do prédio, que estou dizendo que foi uma reunião golpista, ali não houve nenhuma discussão sobre um planejamento de nada de prisão, de morte de ministro. Claro que as pessoas estavam indignadas, claro que estavam todo mundo discutindo o que tinha que fazer, o que não tinha que fazer, o que podia fazer, mas não tinha nada ali de uma ata, não, saímos aqui, então você vai fazer isso, você vai fazer aquilo, não tinha. Tinha três amigos, dez amigos, onze amigos ali, discutindo as coisas que estavam acontecendo, que estavam acontecendo no país”.
“Naquele momento ninguém botou um plano de ação, é esse ponto que eu quero deixar claro, ninguém chegou com um plano e botou um plano na mesa e falou assim, não, nós vamos prender o Lula, nós vamos matar, nós vamos espionar, eu não sei, eu não sei se tem mais embriões, mais gente, tanto que eu não estava em nenhum grupo desses, eu não estava nem na lista de cargos que iam a ser feitos depois, eles estavam usando material, meios do exército, para fazer as coisas, então se tinha mais gente incluída, se tinha menos, não sei, eu não sei, eu não participei de nenhum planejamento detalhado de nenhuma ação, meu mundo era o mundo do presidente (…)”.
Os apoiadores de Bolsonaro alegam que a delação de Cid não poderia embasar a denúncia, pois a frase “O que eu ouvi…” não configura prova jurídica. Além disso, se Cid não fez parte do suposto núcleo criminoso, não participou de reuniões estratégicas e não executou qualquer ação, não teria elementos suficientes para incriminar alguém. Segundo essa visão, o que Cid relata é apenas que havia pessoas no governo e em seu entorno insatisfeitas com o sistema e manifestando sua indignação. Mais do que isso: se Cid afirma que seu “mundo era o mundo do Presidente Bolsonaro” e que nunca testemunhou qualquer plano golpista, como poderia Gonet sustentar que Bolsonaro liderou uma tentativa de golpe?
São as inconsistências apontadas pelos críticos da acusação, os quais poderíamos chamar de anti-dworkinianos-gonetistas.
Nos próximos meses, a controvérsia deve continuar gerando debates acalorados, com disputas jurídicas e políticas. A decisão do STF, esperada para o segundo semestre do ano, será um marco fundamental, possivelmente influenciando o cenário político de 2026.
Apertem os cintos.