O herói retirante

por Sérgio Trindade foi publicado em 13.fev.22

Desde a segunda metade da primeira década deste século eu digo a amigos e escrevo sobre a construção de uma imagem santificada de Lula, que, ressalto, é certamente, na companhia de Getúlio Vargas, a maior liderança de massas que o Brasil já teve. A primeira colocação que ostenta nas pesquisas de opinião, frequentemente contestadas pelos seus opositores, demonstra que ele continua politicamente em forma, embora distante do que foi há duas décadas, quando venceu José Serra, e mais distante ainda do líder que desceu a rampa do Planalto, em janeiro de 2011.

O primeiro dos dois volumes de sua biografia escrita por Fernando de Morais (edição muito bem cuidada da Companhia das Letras), um craque na arte de biografar, atesta o que digo acima. Por si sós, as credenciais de Fernando Morais, um dos responsáveis pela reinvenção do gênero biografia no Brasil, com sua Olga e Chatô, o Rei do Brasil, são uma alavanca de sucesso. A obra, porém, carrega consigo as marcas da amizade entre biógrafo e biografado e, por isso, tem qualidades e defeitos provenientes desta relação, porque a despeito das muitas virtudes que tem Lula, biografia: Volume 1, o resultado está bem aquém do alcançado nas outras duas, acima mencionadas.

Não dá para dizer que Fernando Morais fez, devido à sua amizade com Lula, uma biografia lulista, mas que ela carrega alguma tinta de parcialidade, carrega.

Não é, ressalte-se, a primeira biografia de Lula, uma vez que sobre o ex-Presidente e atual líder nas pesquisas de opinião para a Presidência da República há um perfil escrito por Frei Betto e o livro de Denise Paraná – Lula, o filho do Brasil, o qual serviu de inspiração para o filme de mesmo nome. Também não é um texto louvaminheiro, no entanto tem um certo grau hagiográfico e algo de literatura ficcional, amparada na teoria do monomito do antropólogo Joseph Campbell (https://www.poder360.com.br/opiniao/biografia-de-lula-e-a-construcao-de-um-mito-analisa-traumann/), na qual se inspiraram diversos profissionais da psicologia e do cinema, a exemplo de George Lucas, criador de Guerra nas Estrelas (o personagem Luke Skywalker é fruto das leituras que o cineasta fez de Campbell).

N’O Herói das Mil Faces, Campbell expôs de forma apaixonante a jornada do herói, explicitando ser a vida uma jornada na qual ele é obrigado a enfrentar uma série de testes psicológicos a serem superados (1-Mundo Comum – O herói é apresentado em sua vida diária; 2-Chamado à aventura – A rotina do herói é interrompida por acontecimento inesperado; 3-Recusa ao chamado – O herói prefere não se envolver e continua tocando sua vida comum; 4- Encontro com o Mentor – Esse momento pode ser o encontro com alguém mais experiente ou mesmo com uma situação que o leve a tomar uma decisão que mude totalmente sua vida; 5-Travessia do Umbral – O herói decide ingressar num novo mundo e essa decisão é movida por vários fatores; 6-Testes, aliados e inimigos – O herói passa por testes, é ajudado por aliados e tem que enfrentar os inimigos; 7-Aproximação do objetivo – O herói se aproxima do objetivo de sua missão, mas o nível de tensão aumenta, o que leva a indefinições; 8- Provação máxima – É o ápice da crise; 9- Conquista da recompensa – Passada a provação máxima, o herói ganha a recompensa; 10- Caminho de volta – Atingido o seu objetivo, o heroi retorna ao mundo anterior; 11- Depuração – O herói pode se deparar com uma trama secundária não totalmente resolvida anteriormente; 12- Retorno transformado – O herói volta ao seu mundo, mas inteiramente diferente), evoluindo como ser humano e compartilhando a sabedoria com o restante do mundo, enquanto volta para casa. O grego Ulisses, personagem de Homero, foi o herói, por excelência, em sua jornada. Ao longo d’O Heroi das Mil Faces e de toda extensa obra do antropólogo norte-americano (As Máscaras de Deus, A Imagem do Mito e A Jornada do Heroi são outras de suas obras marcantes) está exposto que esse mito se repete em todas as culturas e mitologias do mundo.

Fernando Morais constrói a biografia do líder petista como a do herói em sua jornada (não necessariamente em todas as etapas), enfrentando as provações trágicas, afinal Lula era uma pessoa comum chamada a um desafio, que inicialmente rejeitou para logo ser convencido a aceitá-lo por uma figura mítica, passou por um treinamento mágico, teve a coragem testada, perdeu e levantou-se, aprendeu com as derrotas, alcançou um estágio superior, enfrentou novas e fortes provações para, ao final, superando todos os medos e demônios interiores e pesada oposição exterior, alcançar a vitória final.

O trabalho de Fernando Morais sobre Lula é, como quase todas as suas obras, de leitura fácil e prazerosa, como se fosse um romance – coisa que não deixa de ser. E é um passeio pela história do Brasil iniciado com dois momentos de purgação e pontos: as duas prisões de Lula – a de 1980, quando liderava movimentos grevistas em São Paulo, e a de 2018, pela Lava Jato. É sobre estes dois pontos que o autor vai desnudando a história do país dos anos 1950-60 até os dias atuais.

Sem seguir uma ordem cronológica dos fatos, Fernando Morais dá uma dinâmica especial à narrativa, como a infância muito pobre de Lula, os desmandos paternos e a extrema proteção materna; dona Lindu, mãe de Lula, aparece como o esteio moral da família, a base sobre a qual foram erguidos os valores do ex-presidente e de seus irmãos. A palavra do ex-presidente aparece como um documento histórico, como ao relatar o grau de pobreza no qual viveu: “Eu sei o que é morar no fundo de um bar, tendo que usar banheiro em que um bêbado tinha acabado de vomitar na pia, cagar num pedaço de jornal. Era aquele banheiro que a gente utilizava, eu, minha mãe e minhas irmãs. Disso eu sei como ninguém. (…) No quarto dormiam minha mãe, duas irmãs e eu, que era o caçulinha e podia dormir junto com as mulheres. Na cozinha, em caminhas de abrir, dormiam sete ou oito”. Ou como descreve a sua primeira prisão, quando o ABC, entre 1978-80, fervilhava. Para ilustrar, o autor destaca o episódio em que um grupo de trabalhadores partiu para cima dos agentes de segurança que, sob as ordens do II Exército, acompanhavam o movimento grevista. Novamente a palavra de Lula vem para atestar a história: “Um dia apareceram uns companheiros propondo (…) pegar um balde de gasolina, vir por trás da viatura e despejar o combustível sobre ela e meter fogo, com os tiras dentro. Eu achei que era uma loucura e não deixei fazerem isso”.

E o autor segue mostrando como, mesmo com o sofrimento, dona Lindu não esmorecia e estava sempre pronta a ajudar a quem estava ainda mais necessitado, pois, confere Fernando Morais, se aparecia alguém pedindo esmola, “ela convidava a pessoa, por mais maltrapilha que estivesse, a entrar em casa, sentar-se à mesa e comer com os demais. Sentar significava acomodar-se num caixote ou banquinho”.

E foi vivendo na pobreza que Lula ingressou no Serviço Nacional de Aprendizado Industrial (Senai) e ali, segundo ele mesmo diz, encontrou rumo profissional, tornando-se o primeiro entre os irmãos “a ganhar mais que o salário mínimo, o primeiro a ter uma casa, o primeiro a ter um carro, o primeiro a ter uma televisão, o primeiro a ter uma geladeira. Tudo por conta dessa profissão, de torneiro mecânico, por causa do Senai. O período que eu passei no Senai talvez tenha sido o mais importante período de minha vida. (…) Acho que foi a primeira vez que eu tive contato com a cidadania”.

Politicamente alienado, Lula não sabia, em meados dos anos 1960, o que ocorria no mundo e no Brasil. Para ilustrar isso, Fernando Morais cita que, mesmo apoiando os militares que desfecharam o golpe que derrubou João Goulart, ele alimentava “silenciosa admiração pelos nomes dos ex-governadores Leonel Brizola e Miguel Arraes, inimigos jurados do novo regime, que despachara ambos para o exílio”. Somente com o contínuo mergulho no movimento sindical foi que Lula tornou-se o animal político que deu nova direção e sentido às mobilizações dos trabalhadores da indústria e, depois, pensou, propôs e conseguiu montar o maior partido de massas da América Latina, com a presença de operários, intelectuais e igrejeiros, catapultando-se como principal liderança da agremiação e cinco vezes candidato à Presidência da República, obtendo sucesso em duas.

A partir da primeira prisão, o autor constrói detalhadamente como o menino retirante se tornou o sindicalista que repetia “não gosto de política, nem de quem gosta de política” e foi se politizando, ganhando musculatura, conhecendo gente importante e decidindo criar um partido político a partir de uma colcha de retalhos de militantes sindicais, ativistas ligados à igreja Católica, intelectuais distantes do Partidão (o antigo PCB) e trotskistas, estreou nas urnas, como candidato a governador, ficando em quarto lugar, com 1,1 milhão de votos (em torno de 10% do eleitorado), muito atrás dos 5,2 de votos dado ao vitorioso, o peemedebista André Franco Montoro, derrota que deixou Lula extremamente abatido, por quase três anos, e convencido a abandonar a política. Quem o demoveu foi o cubano Fidel Castro, com quem Lula se encontrou, em Cuba, no início de 1985, num seminário convocado pelo ditador cubano para discutir “a dívida externa dos países pobres com os organismos financeiros internacionais”. Fidel encontrou-se com Jamil Haddad e quis saber notícias do líder petista e ouviu um prognóstico fúnebre: “Politicamente o Lula acabou, é carta fora do baralho”, disse o médico. Sabendo que Lula estava em Havana, Fidel o convocou para uma conversa e, após ouvir as lamúrias do sindicalista brasileiro, foi direto ao ponto: “Escuta, Lula: desde que a humanidade inventou o voto, inventou as eleições, nenhum trabalhador… repito, nenhum trabalhador, nenhum operário, em nenhum lugar do mundo… recebeu um milhão de votos, como aconteceu com você. Se permite a opinião de alguém mais velho e mais experiente, ouça o que estou dizendo: você não tem o direito de abandonar a política. Você não tem o direito de fazer isso com a classe trabalhadora”. O conselho de Fidel Castro mudou a trajetória e deu rumo à carreira política do líder petista. Está aí a dívida de Lula com o revolucionário cubano e, portanto, a fidelidade canina que brasileiro tinha (e tem) com o moribundo regime comunista caribenho, afinal, voltando a Joseph Campbell e a Fernando Morais, Fidel Castro fez o papel do mito que ergue o herói caído.

O outro ponto a se destacar é a construção da narrativa sobre a prisão de Lula na esteira da Lava Jato, descrita como injusta por estar baseada numa sentença condenatória excêntrica e estapafúrdia construída por um condomínio de forças nas quais as pontas-de-lança foram partes da Polícia Federal e do Ministério Público, chefiadas por Deltan Dallagnol, e pelo juiz Sérgio Moro, depois contando com o concurso de juízes do Tribunal Regional Federal (TRF-4)…

Após 580 dias presos, quando Lula saiu da cadeia foi até a vigília montada em frente ao prédio da Polícia Federal, em Curitiba, e disse: “Todo santo dia vocês eram o alimento da democracia que eu precisava para resistir à safadeza e à canalhice que o lado podre do Estado brasileiro fez comigo e com a sociedade brasileira”. Para não dizer que não falou do amor, emendou: “Quero lhes apresentar minha futura companheira. Vocês sabem, consegui a proeza de – preso – arrumar uma namorada e ainda ela aceitar casar comigo”. Aos apelos “beija, beija”, deu “um beijo cinematográfico em Janja, desce a escadinha do palanque e, sem precisar anunciar a ninguém, pisa no chão como candidato a presidente”.

A maneira como o autor tece os fios da trama me fizeram lembrar também do conto O imortal, do escritor argentino Jorge Luís Borges, no qual o genial escritor argentino diz que à “exceção do homem, todas as outras criaturas são imortais por ignorarem a morte. Tudo, dentro os mortais, temo valor do irrecuperável e do perigoso. Dentre os imortais, de outro lado, nada é preciosamente precário”. Como a imortalidade mesma não está ao alcance dos homens, eles buscam elementos, físicos ou simbólicos, que os perpetuem. E é aí que entra o texto de Fernando Morais (e outros tantos) que se dão ao trabalho de alçar Lula à imortalidade. Não devemos esquecer que o próprio Lula pôs tijolos nessa construção: “Eles tentaram matar uma ideia, e ideia não se mata”.

Na construção narrativa do primeiro ponto, a primeira prisão, Fernando Morais conseguiu reproduzir com modulações e detalhes os estertores do período autoritário, No entanto, não logrou êxito, de maneira eficaz, ao expor a prisão de Lula, em 2018. Não contextualiza adequadamente a prisão de Lula e tampouco as especificidades que propiciaram o antipetismo como impulso político, com a consequente eleição de Jair Bolsonaro. Queixando-se da parcialidade da cobertura da imprensa, Fernando Morais parece não perceber que o aligeiramento e a consequente superficialidade em analisar as denúncias de corrupção contra os governos de Lula e Dilma leva-o a cometer os mesmos erros de que acusa a imprensa.

O Lula dos anos 1970 está no livro como um personagem em construção; o preso da segunda década deste século é o líder maduro, injustiçado por um pool de forças contrárias ao progresso com preocupações sociais, do qual ele, Lula, é o agente. É o líder cordato e senhor de si que acalma a militância que o conclama a resistir à prisão, e a buscar o exílio, que recusa qualquer tipo de confronto com as forças policiais e que, preso, segue a saga moderada e estoica demonstrada na amizade que faz com os carcereiros, torna-se leitor disciplinado e desenvolve rotina epistolar, estimula a visita de personalidades do mundo artístico, literário, político e religioso e continua posando de injustiçado. Tudo isso enquanto avalia quem com ele esteve na queda e como irá partir para o ataque contra os seus algozes. Não como um vingador, mas como herói a ser reabilitado no tribunal da História.

O herói na sua jornada é o Lula, de Fernando Morais. Um personagem literário e não um político do mundo real.

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