A nossa televizinhança em Florânia
Ontem, do meio para o fim da noite, minha irmã Maria Luiza, a quem chamo desde a minha mais tenra infância de Neném, enviou-me uma mensagem para me indicar um programa que a Rede Globo iria passar após a última novela do dia.
Há tempos não vejo TV aberta, nem mesmo os jogos do campeonato brasileiro, principalmente depois que o meu Vasco da Gama foi, pela enésima vez, rebaixado para a segunda divisão e de lá não saiu e, creio, demorará a sair. Até as TVs por assinatura assisto pouco, vez por outra um programa de esportes ou de notícias. Tornei-me um aficcionado de filmes em streamings, YouTube, etc. Ontem, porém, alertado por Neném, uma saudosista incorrigível, dei um voto de confiança à Rede Globo.
A Rede Globo é, desde os anos 1970, quando passei a entender melhor as coisas, veementemente criticada. Pelos revolucionários de esquerda e de hábitos pequeno burgueses, por ter apoiado o regime autoritário de 1964. E, agora, pelos conservadores, por apresentar programas que, afirmam, corrompem os costumes, e pelos reacionários, por ter se tornado comunista ou coisa do tipo.
Sabedor da indiscutível qualidade técnica dos programas da empresa da família Marinho e incentivado pela minha irmã, que se lembrou que nossa casa, em Florânia, era uma espécie de cinema, ao qual muitos se dirigiam para assistir principalmente novelas, lá fui assistir o programa sobre os setenta anos das novelas. Lembrei-me de uma obra ficcional que li, Televizinhos, quando estava fazendo doutorado, escrita por Toni Brandão e que conta a história de três amigos e vizinhos (Kiko, Tuto, Clara e Rita) em vias de entrar na puberdade e que se envolvem numa confusão. A síndica resolve demitir o porteiro, seu Raí, e os quatro amigos se engajam na defesa do funcionário prestes a ser posto no olho da rua. A história gira em torno disso e do contato que os jovens têm com a televisão e, portanto, com os assuntos do momento; guerras, drogas, sexo, preconceito, etc.
Em Florânia, entre 1972-1973, tinham três aparelhos de televisão, disse-me Neném: o de tio Paulo (tio materno de minha mãe e nosso tio-avô), adquirido às vésperas da copa de 1970 e o qual, posto num janelão da casa, permitiu à população floraniense assistir, em turvas e tremidas imagens, aos jogos da máquina de jogar futebol comandada por Pelé e companhia (um dos filhos de tio Paulo, Tarcísio, disse-me, certa vez, que ninguém via quase nada, porque a imagem era, com muito boa vontade, ruim e que a maioria ficava ouvindo pelo rádio); o lá de casa, adquirido em 1972, e que instalada em ampla sala permitia a uma grande quantidade de pessoas assistir às novelas da já decadente mas ainda forte Rede Tupi e da ascendente Rede Globo; e o de seu Chico Amaral, prefeito por algumas vezes do município.
Uma novela nos veio particularmente à lembrança, Mulheres de Areia, com elenco de peso (http://teledramaturgia.com.br/mulheres-de-areia-1973/), no qual se destacavam o par romântico Carlos Zara (Marcos) e Eva Wilma (Ruth/Raquel), Gianfrancesco Guarnieri (Tonho da Lua), em atuação impecável, Cláudio Correa e Castro (Virgílio Assunção) e Cleyde Yáconis (Clarita).
Mulheres de Areia, escrita por Ivani Ribeiro a partir de uma radionovela de sua autoria, As Noivas Morrem no Mar, conta a história das irmãs gêmeas Ruth e Raquel, idênticas na aparência e extremamente diferentes em personalidade e caráter, e mobilizou noveleiros por todo o Brasil. Florânia, no Seridó potiguar, naturalmente, não ficou à margem da onda, e juntava legiões de fãs que se distribuíam pelas casas para assistir os 253 capítulos da trama, exibidos entre 26 de março de 1973 e 05 de fevereiro de 1974 (https://observatoriodatv.uol.com.br/noticias/ha-exatos-45-anos-estreava-a-primeira-versao-de-mulheres-de-areia), encerrando-se justa e coincidentemente quando Neném veio de mudança para Natal, onde morou por um ano na casa de nossa avó paterna, Deoclécia, e nossa tia paterna, Deofran, e quando o Brasil começava a experimentar o clima de preparação para copa do mundo jogada, naquele ano, em gramados da Alemanha Ocidental e ganha pelos anfitriões e que, uma vez mais, atraiu um bom número de pessoas para nossa residência, tendo meu pai, seu Dedinho, como anfitrião.
O público de Mulheres de Areia era majoritariamente feminino e, como mamãe nunca foi noveleira, minha irmã era a anfitriã. Na sala, espalhadas em sofás e cadeiras e pelo chão, primas (Manaíza, Lígia, Francisca Teresinha, Jeanine, Fábia) e amigas (Fatinha, Ana de Dedé, Fátima Galdino, Pequena, Maria Alice, Lena, a mais linda das amigas de Neném, e outras que a memória teima em não lembrar), uma quase multidão de mulheres de todas as idades, com presença mais marcante de jovens e adolescentes, todas suspirando por Carlos Zara, galã da trama, torciam para que ele ficasse com a doce e recatada Ruth e abominavam o comportamento frio e calculista de Raquel.
Finda a sessão da noite, por volta das 21h, a mulherada saía em peso “do cinema de Dedinho”, como muitos diziam na cidade, e se dirigia para suas residências comentando o capítulo assistido e fazendo planos para a sessão do dia seguinte.
O programa exibido pela Rede Globo na noite de ontem fez a mim e à minha irmã – mais a ela do que a mim – lembrarmo-nos dos tempos de nossos televizinhos espalhados por toda Florânia, da televisão preto e branco, das andorinhas que pousavam na antena (instalada num cano de ferro muito alto para garantir melhor imagem), dos amigos de nossa família e dos nossos amigos e primos que partilharam conosco aquela vida bucólica e provinciana já bafejada pelos recursos tecnológicos que transformavam o mundo numa aldeia global.
Saudades do que vivi. Saudade maior ainda do que consigo lembrar e tristeza por não conseguir lembrar de mais eventos e acontecimentos.