Paulo Freire é patrono de qual educação brasileira? – Parte I

por Sérgio Trindade foi publicado em 08.jul.22

Paulo Freire é patrono de qual educação brasileira? – Parte I

 

Passei todos os meus anos de faculdade, do início da idade adulta até a maturidade, da primeira de algumas graduações até a pós-graduação, ouvindo a velha cantilena de que Paulo Freire isso, Paulo Freire aquilo.

Paulo Freire (foto retirada da Internet)

Integrante da tchurma, eu repetia, sem lê-lo, alguns chavões sobre o patrono da educação brasileira; dizer jargões, clichês e chavões, pronunciados e propagados com ares de sabedoria, era uma forma de sobreviver em meio à selvageria da militância à qual eu era associado. Eu me sentia, como dizia um amigo já falecido, Walner Spencer, dentro de um coco, rodando e rodando, sem encontrar um norte. Como tempo, fui à obras do educador brasileiro, e lia e relia Paulo Freire e o via como um homem de ótima formação, grande cultura, mas de pouca contribuição ou com contribuição engajada demais, orientada demais para fins políticos outros que não os da formação dos jovens. Estudiosos do autor diriam que eu não li direito, só li alguma coisa, não me aprofundei, etc, etc e etc.

Nunca fui estudioso Paulo Freire. Li quatro trabalhos dele: Pedagogia do Oprimido, Pedagogia da Autonomia, Pedagogia da Esperança e A importância do ato de ler.

Antes de seguir adiante, digo: não é possível falar de um Paulo Freire único e imutável, dado que ele desenvolveu suas ideias ao longo de algumas décadas. Porém, espalhar o autor por décadas para livrá-lo ou para justificar os tropeços que teve pelo caminho também não é o melhor caminho para estudá-lo a sério. Em outras palavras, existem muitos Paulos Freires, como existe o jovem Marx e o Marx maduro e é assim com qualquer escritor que tenha exercido o ofício por muito tempo.

Tanto os múltiplos Paulos Freires, como o jovem e o maduro Marx, são Paulo Freire e Karl Marx. De qualquer forma, adianto: o Paulo Freire daqui não é o do alinhamento ao nacional-desenvolvimentismo e ao Instituto Brasileiro de Estudos Brasileiros – ISEB, repartição criada por decreto presidencial de 14 de julho de 1955, vinculada ao Ministério da Educação) e que estudava e divulgava as ciências sociais, tornando-se um dos centros mais promissores e importantes de elaboração dos projetos do nacional-desenvolvimentismo. Também não será o que se arma para combater o analfabetismo e a prática da alfabetização funcional, corrente no Brasil desde o final da monarquia e utilizada para formar eleitores que aprendessem a assinar seus nomes e assim estivessem habilitados a votar em candidatos escolhidos pelos mandões locais.

O Paulo Freire sobre o qual escrevo aqui é o da Pedagogia do Oprimido, o Paulo Freire dos militantes cegos e toscos e que são postos como pontas-de-lança pelos presumidos estudiosos do, digamos, sofisticado Paulo Freire para dar caneladas em todos aqueles que se aventurem a dizer qualquer coisa contrária ao pensamento do ínclito Patrono. O(s) outro(s) Paulos Freires virão posteriormente, na sequência deste primeiro artigo. Insisto: a turma que desfere ponta-pés em críticos de Paulo Freire é tolerada, quando não insuflada, pela tchurma para fazer o serviço sujo de maldizer qualquer um que se ponha no caminho da Verdade. Mas essa mesma tchurma assume ares de vítima quando ponta-pés são desferidos em sentido contrário.

Paulo Freire é o teórico educacional mais influente da história brasileira. Detentor de diversos títulos Doutor Honoris Causa, influenciou gerações de profissionais do ensino que formam outras no Brasil e no mundo.

Desde que comecei a me libertar da tchurma, ali por meados da primeira década deste século, passei a perceber que ele escreve em círculos, escondendo o que pensa e sendo escondido por quem o estuda ou diz estudá-lo. Não é incomum aparecer um ou outro acadêmico ou intelectual dizendo: “Paulo Freire é o pensador brasileiro mais citado no mundo”, como se ser citado por ser citado fosse um feito sem igual.

O educador nascido em Pernambuco esteve na crista da onda da Unesco, esteve e está presente nos fóruns de setores progressistas da igreja católica e é incensado por colegas professores de graduação e pós-graduação, no Brasil e no exterior, num processo que se materializa como uma câmara de eco (https://repositorio.ufc.br/handle/riufc/44732), sistema de cooperação e compartilhamento de informações entre pessoas e grupos considerados confiáveis. A comunicação e a interação nela paradoxalmente restringem e difundem as ideias em nichos possuidores dos mesmos princípios, espécie de condomínio intelectual no qual quem é foge da média da opinião é considerado adversário, senão inimigo (frise-se que muitos dos críticos de Paulo Freire também se comportam da mesma forma).

A menção ao Paulo Freire citado à exaustão por estudiosos do fenômeno educacional empresta uma aura de sacralidade acadêmica e intelectual ao patrono da educação brasileira e gera uma multidão de adoradores dele, que repetem também à exaustão platitudes provenientes dos ensinamentos do deus da pedagogia tupiniquim e que é responsável, aí sim, por um hermetismo de pensamento difícil de permitir a libertação de quem o lê, que, ressalte-se, era típico do marxismo até ali pelos anos 1960-70. Alguns exemplos do que afirmo:

1) Althusser –  “Tal como são defendidas, em seu campo ele mesmo limitado, estas teses parecem-me fortes, pois, elas excluem toda aparência de uma autoprodução do conceito (e, ainda mais, do real pelo conceito) ao modo hegeliano, e elas obrigam a pensar, num momento específico da exposição, a posição, a intervenção dos conceitos-chave em torno dos quais se organizam a constituição e a exploração do campo conceitual em suas múltiplas combinações: o conceito de valor (‘fundamento primeiro’), o conceito de capital e o conceito de produção capitalista, que comandam todo o desenvolvimento do Capital. Ora, quem diz posição dos conceitos, impede de pensar sua aparição na ‘ordem das razões’ como autoprodução dos conceitos: a continuidade aparente da ordem de exposição oculta descontinuidades teóricas, escandidas pela posição de conceitos chaves. [Ao invés de dedução (do conceito de capital, por exemplo, a partir daquele de mercadoria), trata-se] […] de uma posição de conceito que abre um novo espaço. Mas, ao mesmo tempo em que abre, esta posição o fecha.”

2) Habermas – “Não é a relação de um sujeito solitário com algo no mundo objetivo que pode ser representada e manipulada, mas a relação intersubjetiva, que sujeitos que falam e atuam assumem quando buscam O entendimento entre si, sobre algo. Ao fazerem isso, os atores comunicativos movem-se por meio de uma linguagem natural, valendo-se de interpretações culturalmente transmitidas, e referem-se a algo simultaneamente em um mundo objetivo, em seu mundo social comum e em seu próprio mundo subjetivo.”

O ponto alto da mágica dos intelectuais marxistas que fizeram a festa entre os anos 1960-70 está no Por Marx, de Althusser: “Esta não é apenas a sua situação em princípio (aquela que ocupa na hierarquia de instâncias em relação à instância determinante: na sociedade, a economia) nem apenas a sua situação de facto, (se, na fase em questão, é dominante ou subordinada), mas a relação dessa situação de facto com essa situação de princípio, ou seja, a própria relação que faz dessa situação de facto uma variação da estrutura – ‘invariantes’ – em dominância, da totalidade.”

Paulo Freire pratica, na Pedagogia do Oprimido, o mesmo tipo de mágica.

Na Pedagogia do Oprimido, lançada em 1974 e obra mais conhecida e talvez a mais citada de Paulo Freire, abundam passagens, digamos, althusserianas. Com linguagem circular e por vezes impenetrável, fica praticamente impossível dizer que ele está enganado ou errado em divagações como esta: “(…) consciência e mundo se dão ao mesmo tempo; a libertação violenta dos oprimidos pode inaugurar o amor ao opressor”. Já li que quem critica passagens como esta só o fazem por completo desconhecimento das bases teóricas com as quais lida Paulo Freire, a saber, a cognição corporificada, que fornece bases da interdependência entre corpo, mente e mundo e é anterior mesma à Pedagogia do Oprimido, mas que se fortaleceu com pensadores importantes, entre os quais Merleau-Ponty e alguns outros da América Latina, com os quais Paulo Freire passou a dialogar a partir do seu exílio chileno.

Paulo Freire é canonizado e sacralizado no Brasil (e mesmo no exterior), como o seu talvez maior referencial teórico, a saber, Karl Marx, a quem procura disfarçadamente justificar em seus trabalhos, entre os quais o já citado Pedagogia do Oprimido. Fica claro, na obra citada, que Paulo Freire parece não estar minimamente interessado nos grandes pensadores e educadores do mundo ocidental, como Jean J. Rousseau ou Jean Piaget ou John Dewey ou qualquer outro da mesma estirpe, mas em personagens como Karl Marx, Lenin, Ernesto Che Guevara, Fidel Castro, Mao (falaremos em outro texto sobre tais amores) ou em engenheiros sociais como Herbert Marcuse, Régis Debray, Erich Fromm, Louis Althusser, entre outros, dentro de uma lógica social binária, que divide o mundo em opressores e oprimidos.

Muitas das passagens da Pedagogia do Oprimido não dizem nada e são feitas para isso mesmo – para nada dizer, erguendo uma barreira de abstrações intransponíveis, atrás da qual o nada dito fica escondido. Os que ousam discordar da bruxaria são apontados como anticientíficos (ou negacionistas, para usar termo que ficou em moda nos últimos tempos), fechando qualquer espaço para o debate sobre o autor.

Mas isso será assunto para outro texto.

 

 

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