Pirro e a redação do ENEM
Divulgado o resultado do Enem 2023, começam, pasmem!, festejos.
Sessenta candidatos atingiram nota máxima (1.000) na prova da redação, entre os 2.7 milhões que fizeram as provas ou 0,002222%. Destes, apenas quatro estudaram na rede pública de ensino, um percentual de 0,0001481%. No Rio Grande do Norte foram seis (no Nordeste 25) os que tiveram nota máxima, apenas um de escola pública, o IFRN-campus Caicó.
Mesmo com números tão sofríveis, o pessoal que gosta de fazer militância política partidária vai “às ruas” fazer festa, com argumentos do tipo: “O Nordeste mais uma vez mostra que tem mais inteligentes do que o Sudeste”. O motivo dos festejos: enquanto o Nordeste teve 25 notas mil, o Sudeste teve somente 18 (sete no Sul, cinco no Norte e cinco no Centro-Oeste). Fracasso de ambos e de todas as demais regiões do Brasil, fracasso do Brasil todo, mas a torcida assim não enxerga, porque a vergonha dessa gente sumiu. O resultado do ENEM é, ano a ano, um fracasso de proporções oceânicas.
Não seria o fim do mundo se a maioria dos candidatos atingisse índices muito bons na redação ou se destacassem nas outras provas. Não é o caso, pois a nota média nas provas de todas as áreas não ultrapassa a casa de 500 pontos, abaixo da média mínima que a rede pública estabelece para aprovar os seus alunos (e quem trabalha em sala de aula sabe bem o que significa promover alunos sem as condições mínimas para tal).
Os sessenta candidatos que atingiram 1.000 na prova de redação e muitos outros que vão muito bem na redação e nas outras provas devem os seus desempenhos a si mesmos, e não à Escola. Caso o sistema educacional brasileiro fizesse a sua parte, não seriam somente sessenta os vitoriosos e a média das provas não estaria abaixo de 500.
Não precisa observar com atenção extrema as peculiaridades de nosso sistema educacional para perceber elementos messiânicos nele presentes, elementos que insistem em querer salvar as pessoas delas mesmas, que as enxerga como seres incapazes de compreender minimamente a dinâmica da vida social e que, por isso, devem ser amparadas e protegidas. Para utilizar os princípios kantianos, há um desejo irreprimível de tutelar o entendimento do outro, aqui considerado massa amorfa, conduzindo artificialmente a vida dele. Prepará-lo, como indivíduo, para enfrentar o mundo real não está no horizonte.
A vitória do Nordeste sobre o Sudeste (ou se fosse o contrário) no ENEM-2023 é uma miragem. Na melhor das hipóteses uma vitória de Pirro, o rei de Épiro que, após ganhar dos romanos a batalha de Áusculo a custo muito alto, declarou que outra vitória similar seria o mesmo que ser derrotado.
O embate NE x SE do ENEM-2023 expressa simbolicamente a divisão política hoje do Brasil e o joguinho medíocre e rasteiro de quem pouco se preocupa com o Brasil, com cada “vitória” sendo celebrada pelo vencedor sem averiguar o custo de cada batalha para a unidade do país e o moral da “tropa”. As vitórias pírricas que cada lado sustenta representa uma conquista obtida com sacrifício que não é efetivamente sustentável e, portanto, não compensa os danos.
O naturalista francês Auguste de Saint Hilaire, que percorreu o Brasil por quase seis anos no primeiro quartel do século XVIII, advertiu: “Ou o Brasil acaba com a saúva, ou a saúva acaba com o Brasil”. Passados mais de duzentos anos, a advertência segue atual, mesmo a formiga estando sob controle, pois existem saúvas aos borbotões que insistem em acabar com o país, ainda que depois da devastação nada mais tenham para sustentar.
O sistema educacional brasileiro está, há décadas, falido. Ou nós o mudamos ou ele acaba com futuro do Brasil.