O Rio Grande do Norte e a Revolução de 1817

por Sérgio Trindade foi publicado em 14.mar.24

Em 6 de março último fez 207 anos da Revolução Pernambucana de 1817, um dos capítulos menos conhecidos e mais belos da história do Brasil. Nela o Rio Grande do Norte teve papel de destaque na figura de padre Miguelinho, e Câmara Cascudo, em sua História do Rio Grande do Norte, quase sempre fenomenal, assim a descreve, numa das passagens mais memoráveis sobre aquele movimento: “a mais linda, inesquecível, arrebatadora e inútil das revoluções brasileiras. Nenhuma nos emociona tanto nem há figuras maiores em tranquila coragem, serenidade e compostura suprema, decisão de saber morrer, convencidos da missão histórica assumida e desempenhada. Morrem fazendo frases, dignos, certos de uma participação pessoal no futuro que só evocaria com a lembrança apaixonada dessas fisionomias graves, fervorosas e enamoradas do idealismo político.”

Há quem diga que a conspiração da família Suassuna (Francisco de Paula, Comandante de Ordenanças da Freguesia do Cabo, José Francisco, capitão do Corpo de Artilharia da Praça do Recife, e Luís Francisco, capitão de milícia) na capitania de Pernambuco, em 1801, foi um avant-première de 1817, pois além de já carregá-la em espírito, alguns dos seus líderes, estiveram presentes no grande movimento revolucionário que sacudiu Pernambuco e capitanias vizinhas. Reuniões “muito concorridas” ocorreram na casa dos Suassuna, em Recife, segundo Olavo de Medeiros, em Aconteceu na capitania do Rio Grande, “o que ensejou uma delação feita por José da Fonseca Silva e Sampaio, que revelou o fato de que naquelas reuniões (…) estaria em marcha uma conspiração que tinha por objetivo (…) implantar em Pernambuco uma República sob a proteção de Napoleão Bonaparte. A conspiração, na realidade, não ultrapassou o plano das ideias, nem chegou a concretizar-se em atos de rebeldia. A delação abortou o movimento ideológico, ocorrendo então a prisão dos principais acusados. Por ocasião da devassa de 1801 em Pernambuco, foram inquiridas oitenta testemunhas, inclusive ANDRÉ DE ALBUQUERQUE MARANHÃO, apontado por três depoentes como sendo uma das pessoas que entravam com mais frequência na casa dos Suassuna, gozando ademais de muita familiaridade e particularidade com José Francisco de Paula e seus irmãos.”

Dezesseis anos depois, o Nordeste estava uma vez mais convulsionado, desta vez com traços de consciência e unidade nacional, com Pernambuco, polo econômico e político da região, articulando o movimento nos vizinhos Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba, Alagoas e Sergipe, com a fermentação revolucionária nordestina exprimindo “as múltiplas contradições que agitavam a base social”, visto que a elite econômica e política, contrária ao sistema monopolista e ansiosa por ter mais autonomia administrativa, “se inclinava para um republicanismo federalista do tipo norte-americano”, enquanto as camadas sociais mais baixas “oscilava entre um jacobinismo democrático e uma revolução radical do tipo haitiano”. O antilusitanismo fornecia a massa que unia essa “heterogênea composição social dos descontentes do Nordeste brasileiro da época”. O centro irradiador da conjuração foi Pernambuco e ela logo tomou forma e se espalhou pelas capitanias vizinhas, com padres, comerciantes, proprietários de terras e intelectuais liderando o movimento, com destaque para o capitão José Barros de Lima, os padres José Inácio de Abreu e Lima (padre Roma), João Ribeiro e Miguelinho, além de Domingos José Martins e José Luís Mendonça. O governador foi expulso da capitania e o poder foi empalmado; emissários foram enviados às capitanias do Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Bahia e a Londres, Washington e Buenos Aires, buscando obter reconhecimento para a nova república. Foi elaborada Lei Orgânica, base para formulação de uma Constituição, garantindo liberdade religiosa e de pensamento, adoção de uma República, abolição de vários impostos e manutenção da escravidão.

No Rio Grande do Norte, a Revolução de 1817 foi movimento praticamente arquitetado e liderado pela família Albuquerque Maranhão, tendo em vista que nove dos líderes da insurreição eram daquele grupo familiar. Além da família Albuquerque Maranhão, registra a professora Denise Monteiro, no livro Introdução à História do Rio Grande do Norte, a maioria dos envolvidos, no Rio Grande do Norte, era de padres e militares, não sendo muito diferente, portanto, do que ocorreu em Pernambuco. Dos 28 implicados e processados pela participação no movimento, três eram senhores de engenho: André de Albuquerque Maranhão (senhor de Cunhaú), Luís de Albuquerque Maranhão (dono do engenho Belém) e um outro André de Albuquerque Maranhão, primo do senhor de Cunhaú (proprietário do engenho Estivas), quatro padres e 16 oficiais de milícias, alguns deles membros da família Albuquerque Maranhão. Foi, conforme Cascudo, “uma revolução de letrados, juízes, advogados, gente rica, cinquenta padres seculares e cinco frades”, sem a participação do povo.

Logo que soube das vitórias dos revolucionários em Pernambuco, o governador do Rio Grande do Norte José Inácio Borges, sobre quem pairam dúvidas acerca de sua postura em relação à insurreição, lançou circular em 12 de março, citada por Tavares de Lyra na sua História do Rio Grande do Norte: “Povos da capitania do Rio Grande do Norte: no dia 9 deste mês apareceu nesta cidade uma notícia confusa de que na vila de Santo Antônio do Recife, de Pernambuco, havia aparecido na tarde do dia 6 um tumulto popular, do qual se tinham seguido algumas mortes, sem contudo assinar-se o motivo que o tinha operado, e na noite do dia 12 por carta que dali tive de pessoa fidedigna, que não teve parte naquele lamentável acontecimento, nem nas suas consequências, fui avisado de que o resultado daquele tumulto e sedição produziu a saída imediata do general daquela capitania para o Rio de Janeiro e que alguns daqueles facciosos, por efeito a mais inaudita rebeldia, haviam assumido e usurpado a jurisdição do governo, permutando deste modo a paz e tranquilidade de que gozavam os habitantes daquela capitania pelos horrores de uma espantosa anarquia. Não me importando averiguar a origem e progresso daquele detestável atentado, e cumprindo-me só ilustrar-vos sobre ele, recordar-vos a vossa inata fidelidade para com o legítimo Soberano, que até agora nos tem regido com direito de Senhor e desvelo de Pai, no augusto nome do Senhor D. João VI, Rei do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, em África Senhor de Guiné e da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia, vos declaro que estão acabadas as nossas relações e correspondências com todo e qualquer governo ou autoridade levantada atualmente em Pernambuco, e enquanto não nos constar que um general ou outro legítimo delegado de Sua Majestade restabeleceu ali a sua soberania, e reclamando de vós o solene juramento de fidelidade que lhe tendes prestado, e que tem sido sancionado pela nossa Santa Religião, vos convido para que vindos a mim, e debaixo das suas Reais Bandeiras, conservemos pura e sem mácula a nossa nunca interrompida obediência e vassalagem, e possuídos de sagrado entusiasmo gritemos em altas vozes: Viva, Viva, Viva El-Rei Nosso Senhor.”

Depois de emitir a circular, Borges, segundo Cascudo, pernoitou no engenho Belém e ao raiar do dia, “estava cercado de tropas, cavalarianos, oficiais, populares, dirigidos por André de Cunhaú”, sendo posteriormente (3 de abril) transferido para Recife, onde ficou preso na fortaleza das Cinco Pontas. Para Cascudo, nada poderia indicar de forma tão precisa que José Inácio Borges fosse avesso ao movimento revolucionário. Tavares de Lyra, no entanto, citando Raimundo Nonato, diverge: “Affirma Dias Martins (“Os Martyres Pernambucanos”) que José Ignácio Borges hesitou em condemnar o movimento, só o fazendo após a reunião de um conselho que, divergindo da opinião de André de Albuquerque, deliberou, por maioria de votos, que elle fosse combatido. E acrescenta que foi depois disto que o referido governador encarregou André de Albuquerque do commando das forças que deviam guarnecer parte da fronteira do sul, impedindo a invasão da capitania. Si o facto é verdadeiro, cabe-lhe, realmente, a pecha de governador hypocrita com que o fulminou o sanguinário Dezembargador Teixeira Coutinho Alves de Carvalho, Presidente da Alçada: o seu acto valeu por uma irrecusável prova de felonia e de má-fé. O que é certo é que elle se sentiu mais tarde na necessidade de justifica-lo.”  Mais, mesmo reconhecendo a sua cultura e talento, registra que José Inácio Borges “procurou captar a estima e o apoio dos que, pela sua influência, estavam no caso de tornar mais fácil a sua ação administrativa. Essa atitude – que não logrou evitar na capitania a repercussão do movimento revolucionário de Pernambuco, vitorioso no Recife a 6 de março de 1817 – foi mais tarde acoimada de vacilante e dúbia, sendo fora de dúvida que, num momento dado, ele se tornou realmente inexplicável. A sua ida ao engenho Belém é – qualquer que seja o modo de a justificar – um ato senão criminoso, imprudente e leviano ante a iminência de uma sublevação. Ela importou no abandono da Capital, em ocasião em que mais necessária se fazia a presença do representante do poder público, a fim de organizar a resistência e dar homogeneidade aos elementos de defesa de sua autoridade, vigiando pela manutenção da ordem e da segurança, que, ainda mesmo que não estivessem ameaçadas internamente, corriam sério perigo nas fronteiras. É verdade que José Inácio Borges condenara explicitamente a revolução, declarando a capitania desligada de Pernambuco e criando uma alfândega em Natal; mas muitos outros, inclusive André de Albuquerque, o fizeram também, sem que isto tivesse sido obstáculo à sua posterior adesão.”

Em 25 de março o movimento revolucionário estava vitorioso no Rio Grande do Norte e, no dia 28, André de Albuquerque Maranhão, o seu principal líder por estas bandas, entrou em Natal com suas tropas, instalando, no dia seguinte, o governo provisório composto por ele, coronel André de Albuquerque Maranhão, capitão de Infantaria Antônio Germano Cavalcanti de Albuquerque, coronel de Milícias José Joaquim do Rego Barros, capitão de Milícias Antônio da Rocha Bezerra e o padre Feliciano José Dornelas, vigário da Freguesia, todos homens de posses ou bem assentados na máquina estatal, recebendo apoio militar de Pernambuco que para cá enviou, a 30 de março, regimento comandado por José Peregrino Xavier de Carvalho.

Enquanto o regimento comandado por Peregrino esteve no Rio Grande, o governo de André de Albuquerque se sustentou. Quando se retirou o governo sucumbiu, pois sem contar com o apoio popular o clima, segundo Cascudo, era desfavorável, com os monarquistas reunindo-se para conspirar na residência do alfaiate Manuel da Costa Bandeira. Para Denise Monteiro, o governo de André de Albuquerque sucumbiu porque as divergências na Junta Provisória de Governo deixaram o senhor de Cunhaú isolado e também porque “a repressão desencadeada pelas forças portuguesas pôs fim ao movimento em todas as capitanias do Nordeste nele envolvidas”, conforme registra Francisco Iglesias em Trajetória Política do Brasil. Segundo o historiador mineiro, o movimento teve sucesso circunstancial na Paraíba, no Rio Grande do Norte e no Ceará, mas naufragou na Bahia, pois forças navais “foram organizadas no Rio de Janeiro para reprimir os rebeldes. Da Bahia também partiram, por terra e mar. A esquadra bloqueou o Recife. Em vão os rebeldes tentaram negociar a capitulação, a ideia foi recusada. Os soldados governistas desembarcaram no dia 20 de maio. Os revolucionários tentam ir para o Norte, mas debandam: há suicídios, prisões sem conta.”

 

 

A saída das tropas de Peregrino do Rio Grande do Norte deu oportunidade aos monarquistas para organizar a resistência com o objetivo de retomar o controle da situação. O sino da Matriz tocou a senha (nove badaladas) anunciou o início da reação. Na madrugada de 25 de abril, o prédio do governo foi invadido pelos monarquistas, que partiram da casa do alfaiate Manuel da Costa Bandeira, de acordo com Cascudo, “agitando armas, vivando El-Rei e dando morras à Liberdade, convencidos da incompatibilidade entre os dois símbolos”. Não houve reação. A sala onde estava André de Albuquerque foi invadida e ele ferido na virilha e levado preso para a Fortaleza dos Santos Reis, onde veio a falecer no dia 26 de abril, depois de agonizar o dia e a noite inteira. Estava terminada a Revolução no Rio Grande do Norte, pelo menos na área litorânea; o governo republicano durou quase um mês, de 29 de março a 25 de abril.

Difícil explicitar o legado do governo de André de Albuquerque, tendo em vista José Inácio Borges, reempossado como governador, ter sumido com a documentação acerca do movimento revolucionário. Diz José Inácio Borges em ordem emanada no dia 10 de julho de 1817, conforme Tavares de Lyra: “Para todos as câmaras da capitania: Sendo indispensável como medida política extinguir como se nunca existissem todos os escritos que estejam derramados por esta capitania produzidos pelo bando de rebeldes que temporariamente usurpara a Real Soberania, ordeno a Vossas Mercês que já e já, publicado por editais esta minha ordem, façam recolher todas as determinações, cartas e mais papéis que se afixaram ou existirem nas mãos dos empregados e ainda mesmo dos particulares dessa vida, não excetuando os militares, e, arrecadados que sejam, nos remetam fechados, vindo apensos os que também houverem no seu arquivo, compreendidos mesmo alguns termos que se fizessem em livros, cujas folhas serão arrancadas, fazendo-se disto novo termo. No edital que publicarem farão saber que se algum dia me fora denunciada a existência de alguns destes papéis nas mãos de qualquer pessoa ficará, por esse só fato, reputada cúmplice dos rebeldes e como tal punida.”

Com o fracasso do movimento revolucionário nas capitanias vizinhas, os revoltosos pernambucanos ficaram isolados em Recife. A cidade foi bloqueada e os revolucionários foram vencidos pelas tropas fiéis ao Rio de Janeiro e a ordem monárquica restaurada em 20 de maio de 1817. Sufocado o movimento revolucionário em Natal, houve uma tentativa de reacendê-lo no interior (Portalegre, Martins e Apodi), mas sem sucesso. Diz Cascudo que a derrota não apagou a chama da revolução, a “intensidade borbulhante dos espíritos”, pois, desaparecido o governo republicano de 1817 em Natal, ressurgiu na região oeste da capitania. David Leopoldo Targini, emissário dos rebeldes da Paraíba, pôs as mãos nos documentos enviados pelo governo às Câmaras Municipais e, com escolta forte e organizada, dirigiu-se a Portalegre, “onde havia ligação e clima de simpatia, assim como em Apodi e Martins”. Em Portalegre chegou a se instalar um governo republicano de vida curta (10 a 19 de maio de 1817), formado pelo vigário João Barbosa Cordeiro, tenente-coronel Leandro Francisco de Beça, sargento-mor José Francisco Vieira de Barros, capitão Manuel Joaquim Palácio e o tenente Felipe Bandeira de Moura. O governador da capitania enviou tropas de Vila de Princesa que prenderam alguns líderes. Três conseguiram escapar: Targino, o vigário João Barbosa e o padre Gonçalo Borges de Andrade, vigário de Apodi e um dos mais ativos revolucionários.

Apesar de André de Albuquerque Maranhão ter sido homem muito rico, proprietário do maior engenho do Rio Grande do Norte, herdeiro “da numerosa e distinta família dos Albuquerque”, dono “de imensas propriedades territoriais”, com plantações em Cunhaú que “ocupam quatorze léguas ao longo da estrada” e de uma “outra terra vizinha, igualmente vasta”, sem contar “as terras que ele possui no Sertão, para pastagens de gado, supõem não inferiores de trinta a quarenta léguas”, conforme Koster, citado por Olavo de Medeiros Filho, na obra O Engenho de Cunhaú à luz de um inventário, e ter liderado o movimento no Rio Grande do Norte, o grande norte-rio-grandense envolvido na Revolução Pernambucana de 1817 foi Padre Miguelinho, sobre quem escreveremos em outro momento.

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