Espártaco e Zumbi, um paralelo (2)

por Sérgio Trindade foi publicado em 16.ago.23

No primeiro dos textos que escrevi para fazer uma relação entre a rebelião do escravo romano Espártaco e a liderança que Zumbi estabeleceu no Quilombo dos Palmares fiz menção a guerras intestinas que sacudiam o mundo romano e relacionei um desses momentos de instabilidade ao fortalecimento da rebelião de escravos liderada por Espártaco.

Em sua Considerações sobre as causas da grandeza dos romanos e de sua decadência, Montequieu expõe que enquanto conquistava o Universo, Roma experimentava “dentro de suas muralhas uma guerra oculta. Eram labaredas como as dos vulcões, que saem tão logo alguma matéria venha aumentar a combustão.” A afirmação do francês é confirmada por Mary Beard em sua ótima SPQR, uma história da Roma Antiga, a qual citei no texto anterior, pois, segundo ela, ignorar “os romanos é não apenas fechar os olhos para o passado distante”, porquanto Roma ser capaz de nos ajudar “a definir o modo como entendemos nosso mundo e pensamos a respeito de nós mesmos, e isso abrange da alta cultura à comédia barata.” Os romanos nos legaram “ideias de liberdade e cidadania, assim como de exploração imperial, combinadas com um vocabulário de política moderna, desde ‘senadores’ e ‘ditadores’. Emprestou-nos expressões como ‘presente de grego’, ‘pão e circo’ e ‘tocar violino enquanto Roma arde em chamas’ – até mesmo ‘onde há vida, há esperança’.” Tudo isso enquanto viviam momentos de paz entremeados por guerras civis.

O período entre o fim das guerras contra Cartago, em 146 a. C., a aproximadamente 30 a. C. foi extremamente turbulento e foi nele, segundo eminente historiador, “que a nação colheu amplamente os frutos da violência semeada durante as guerras de conquista”, sendo muito comuns os “conflitos de classe, assassínios, lutas desesperadas entre ditadores rivais, guerras e insurreições”, com os escravos contribuindo com o seu quinhão quando, em 104 a. C., “pilharam a Sicília” e uma vez mais, em 73 a. C., quando sob a liderança de Espártaco “mantiveram os cônsules em xeque durante mais de um ano.” Esta segunda rebelião, reforça Mary Beard, começou com Espártaco liderando em torno de cinquenta escravos gladiadores “improvisando armas mediante utensílios de cozinha” para depois fugirem “de uma escola de treinamento de gladiadores em Capua, no sul da Itália”, e seguirem resistindo, depois de montar uma milícia, por dois anos ao assédio de vários exércitos romanos, até sucumbirem, em 71 a. C.

Espártaco foi morto e os seus seis mil seguidores capturados e, conforme registra Burns, “crucificados ao longo de uma estrada como advertência para outros”, no que Mary Beard chama de “desfile pavoroso ao longo da Via Ápia.” Certamente, como afirmei no texto anterior, existiam muitos gladiadores entre os escravos rebelados, mas eles contaram “com o reforço de muitos dos cidadãos romanos descontentes na Itália”, do contrário não teriam condições de resistir “às legiões por quase dois anos”. O fato em si demonstra que houve “uma combinação de rebelião escrava com guerra civil”, acirrando ainda mais o ambiente político no mundo romano e apressando mudanças políticas significativas e responsáveis pelo fim da república.

O número de 120 mil rebeldes chefiados por Espártaco é claramente superdimensionado, diz Mary Beard, para reforçar a aura de herói ideológico dele, como se ele estivesse lutando “contra a própria instituição da escravatura”, algo “praticamente impossível” no mundo romano, tendo em vista ser a escravidão uma instituição “aceita como inevitável, até mesmo pelos escravos”. O que houve era, na melhor das hipóteses, uma luta de escravos para conquistar “a liberdade para si”, com Espártaco e seus companheiros lutando para voltarem “às suas respectivas casas – no caso de Espártaco, provavelmente a Trácia, no norte da Grécia; para outros, a Gália.”

A longevidade do movimento foi resultado da adesão, segundo a autora de SPQR, uma história da Roma Antiga, “de descontentes e expropriados que faziam parte da população livre e cidadã da Itália”, como ex-soldados de Sula que provavelmente se sentiram mais confortáveis “em campanha militar, mesmo enfrentando as legiões nas quais haviam servido, do que arando a terra”.

Desta forma, a rebelião dos escravos romanos liderados por Espártaco não foi apenas uma rebelião de escravos, mas uma seção do capítulo das guerras civis romanas que se encerraram, depois de muito sofrimento, com a ascensão definitiva de Caio Otávio (o imperador Augusto) ao poder.

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