Porque a mídia…

por Sérgio Trindade foi publicado em 12.dez.21

Vira e mexe, algum político ou intelectual ou artista ou cidadão comum saca uma generalidade sobre o comportamento da mídia, dizendo-a golpista, fascista, comunista, vendida e por aí vai, postura que indica a nossa veia autoritária, o nosso desconforto com o contraditório, o nosso incômodo com a liberdade.

Quando a mídia bate em Lula, bolsonaristas e simpatizantes vibram e lulistas e simpatizantes a desmerecem; se Bolsonaro é o alvo, lulistas e simpatizantes soltam foguetões e bolsonaristas e simpatizantes lançam maldições. Formam um povo, com sinal trocado, que não tem um pingo de coerência e tem companhia em praticamente todos os segmentos sociais.

Para defender o que digo acima, vou abandonar a política atual, tóxica como já foi em alguns momentos da tortuosa histórica da democracia brasileira e fincarei em pé em outro momento de rivalidade, quando PT e PSDB viviam às turras, mas de forma ainda civilizada. Por isso, fiquemos somente nos dois presidentes mais importantes do período pós-redemocratização, Fernando Henrique Cardoso e Lula Inácio Lula da Silva.

Nos Diários da Presidência, o intelectual Fernando Henrique mostra a relação tensa que o presidente Fernando Henrique teve com a mídia, notadamente a Folha de São Paulo e as Organizações Globo.

No volume 1, são fartas as reclamações do tucano com a Folha de São Paulo, que, segundo FHC, deu muitas notícias desfavoráveis ao seu governo. Por vezes, FHC exasperou-se com o que chama de excessos do jornal paulista e questionou, em conversa com o aliado pefelista Antônio Carlos Magalhães e amigo e interlocutor frequente de Roberto Marinho, a forma como as novas gerações conduzem as Organizações Globo, preocupadas apenas em “ser contra”.

Luiz Inácio Lula da Silva e principalmente parte do partido dele não tiveram (e não tem ainda hoje) relação das mais amistosas com a mídia. São emblemáticas da tensão, as tentativas de manter controle sobre o setor (vez por outra Lula e acólitos trazem à tona o assunto, às vezes apontando possível controle sobre a Internet) e a investida para expulsar Larry Rother, correspondente do The New York Times no Brasil, porque o jornalista escreveu matéria sugerindo que Lula teria problemas com o álcool.

O que poderia ser um debate sobre a leviandade de Larry Rother transformou-se num incidente internacional, pois em questão de horas, após a desastrada atitude do presidente, jornais de todo o mundo, que publicaram matérias louvando a ascensão do operário que chegou à presidência da república, começaram a apontá-lo, acertadamente, pelo menos naquele momento, como intolerante e autoritário.

Logo depois de deixar o Palácio do Planalto, Lula disse, na França, que a nossa imprensa adora denunciar político, “mostrando a cara dele noite e dia nos jornais”. E completou vil e levianamente que a imprensa não denuncia banqueiros, porque são “eles que pagam a publicidade da mídia”. A fala do ex-presidente insinuava que isso ocorre porque jornalistas não querem apurar e publicar fatos que envolvem os anunciantes.

Não houve muitas manifestações contrárias à fala de Lula, provavelmente por uma razão simples: políticos, como indico acima com o próprio Lula e com FHC, gostam de falar mal da mídia. Os dois, claro, não estão sozinhos na peleja. O comportamento é epidêmico. Basta um veículo cobrar explicações sobre os malfeitos deles ou de seus partidos que logo investem contra a reportagem.

Ao desqualificarem os profissionais que cumprem com suas atribuições, Lula, FHC e outros mais esquivam-se lançando a culpa que carregam numa certa má intenção de repórteres, editores e empresários da comunicação.

Repito, Lula não é o único (está aí Bolsonaro para demonstrar), embora seja useiro e vezeiro na arte de desconversar e desqualificar a mídia, e como fez e ainda faz isso com frequência, os seus arroubos quase já não geram mais notícia.

A fala de Lula na França, acima citada, exala desconhecimento do campo midiático e, mais, não tem base factual, pois não foram poucas as matérias jornalísticas sobre banqueiros metidos em malfeitos. Só pra refrescar a memória, por anos a fio foram expostas as trambicagens nas quais estiveram presentes Edemar Cid Ferreira, Kátia Rabelo, Salvatore Cacciola, Sílvio Santos e outros mais. Há mais: os bancos privados não são, nem de longe, os maiores anunciantes do Brasil, segundo consta no Mídia Dados. Dos 15 maiores anunciantes, em 2020, somente três são bancos, dois deles públicos, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal. Somente um banco privado, o Bradesco, está na lista. Confiram:

Unilever – R$ 1,53 bilhão;

Genomma Lab – R$ 1,005 bilhão;

Sky – R$ 887,63 milhões;

Bradesco – R$ 623,68 milhões;

Banco do Brasil – R$ 616,04 milhões;

Via (ex-Via Varejo) – R$ 606,59 milhões;

Telefônica – R$ 504,64 milhões;

B2W – R$ 498, 61 milhões;

EMS Farmacêutica – R$ 496,93 milhões;

Hypera Pharma – R$ 475,53 milhões;

Amazon Serviços – R$ 469,95 milhões;

Reckitt Benckiser – R$ 455,32 milhões;

Mercado Livre – R$ 455,27 milhões;

Claro – R$ 419,52 milhões;

Caixa Econômica Federal – R$ 383,74 milhões.

Mas os maiores anunciantes de TVs, jornais e revistas são os governos federal e estaduais. Anunciam mais do que o setor industrial e bem mais do que o setor financeiro, e nem por isso deixam de ser citados desfavoravelmente na imprensa.

É preciso, ainda, reconhecer que a mídia tem acertado mais do que errado, denunciando casos escabrosos de desvios de recursos públicos, quase todos confirmados por investigações rigorosas de autoridades do Ministério Público e do Poder Judiciário, algumas engavetadas ou anuladas por juízes aliados de grupelhos políticos.

A fala de Fernando Henrique Cardoso e os vitupérios de Lula retratam apenas o mal-estar de quem é pego em situação constrangedora.

Há uma frase atribuída a Millôr Fernandes que deve exprimir o papel da imprensa no mundo. Para Millôr, “jornalismo é oposição; o resto, armazém de secos e molhados”.  Por isso, não caia na ladaínha dessa turma reclamona. Saiba, à imprensa interessam os anunciantes. E ela nunca foi neutra. O mais importante para ela, porém, é a confiança do público. Sem isso, os anunciantes voam.

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